quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

TECENDO SONHOS E FIANDO DESTINOS


TECENDO SONHOS E FIANDO DESTINOS:


A VIVÊNCIA DO BORDADO EM UM GRUPO DE GESTANTES E PUÉRPERAS

Daniele Cristine da Silva Cirino, psicóloga, aluna do curso técnico de
enfermagem, ETS/UFPB.




Lembro de ser o segundo encontro planejado pelas estudantes que participam do Projeto Educação Popular em Saúde na Atenção às Gestantes e Puérperas da Comunidade Maria de Nazaré. Havíamos combinado de, naquele dia, “sondar” quais temas as participantes do Grupo gostariam de trabalhar nas oficinas que íamos realizar.


Aos poucos elas foram chegando. Umas com barrigas já delineadas, outras nem
 tanto, algumas carregando seus filhos. Foram se sentando e olhando tudo ao redor, não porque o ambiente lhes fosse estranho, mas porque nós éramos. Todas foram sendo acolhidas e, após uma rodada de apresentações, partimos para as atividades.


- “Quero aprender algo pro meu filho!” – disse uma delas, com muitas
 
expectativas.

Gelei! Mas mesmo assim, me atrevi a perguntar: - Como assim?
 

- “Ah, algo que eu possa fazer, sei lá, pro enxoval” – ela confirmou.
 

E agora? Pensei meio aperreada! Olhei para as minhas colegas e só fiquei
 
tranqüila quando uma delas disse que sabia fazer crochê. Depois outra disse que sabia fazer bordados. Ufa! Pensei aliviada já que, até aquele momento, eu não sabia fazer nada disso ou, ao menos, já não me lembrava da última vez em que havia pegado em uma agulha.


Mas foi um alívio passageiro, que logo deu lugar a uma angústia. Algo me
 
inquietou. Talvez porque fosse a primeira oficina em que eu participara na qual foi pedido algo que eu não sabia fazer. O ego se magoou.


Para amenizar, comecei a me responsabilizar mais pelas oficinas teóricas com
  temas previamente definidos, planejados, esquematizados e previsíveis! Tal como aprendi nos cursos por onde andei. Nada podia sair errado! Isso tranqüilizava minha vontade de objetividade por alguns momentos, mas não acalentava meu coração.


Percebi que, assim como as gestantes e as puérperas aguardavam ansiosas
 pelas oficinas práticas, eu também as aguardava. Talvez por ser algo novo, diferente do outro tipo de extensão que havia aprendido a fazer ou, talvez, pela curiosidade de saber aonde estas oficinas iriam nos levar. O que bordado e crochê tinham a ver com temas como parto, planejamento familiar e exame citológico? Tá, podem reforçar o laço entre mãe e bebê, mas o que além disso? Descobri quando as oficinas começaram.

Na medida em que os primeiros fios passaram a colorir as vivências do grupo,
 conversas, nada fiadas, passaram a emergir por entre as tramas. Aos poucos, o grupo passou a ser um local de acolhimento e de troca, não apenas entre gestantes e puérperas, mas também entre todas as participantes, inclusive eu!

Os bordados começaram a ganhar a forma do choro, do medo e do riso. Cada
  novelo de lembranças foi, pouco a pouco, sendo tecido e cada nó desmanchado. E, então, apareceram os filhos perdidos nos abortos espontâneos, aqueles perdidos nos acidentes domésticos, o abandono dos namorados e companheiros, às vezes, ainda tão amados, a incompreensão e não-aceitação da família, o medo de estar sozinha no momento do parto, a preocupação em não ter como sustentar os demais filhos... Tudo isso alternado entre o silêncio, os pontos e os olhares.


O tempo era regido por um novo modo de contar as horas, sem pressa. A
 
objetividade acadêmica dava lugar à conversa espontânea. O distanciamento (dito tantas vezes na universidade como necessário para manter a lógica racional) era substituído pela afetividade. As conversas seguiam o ritmo das linhas bordadas pelo coração.


Mas elas não apenas desatavam seus nós pessoais... Passei a também desatar
  os nós da minha garganta; aqueles que não me permitiam falar, que me emaranhavam os pensamentos e me impediam também de me reconhecer enquanto mulher, antes de ser aluna ou facilitadora de qualquer coisa. Minhas feridas também começaram a se abrir.


Instalou-se um clima de afeto e cuidado entre nós. E foi aí que me abri, de
 fato, para uma vivência autêntica. Muitas vezes, meu companheiro me ouviu falar das “meninas da comunidade”, do quanto o bordado tornou as conversas dinâmicas, sinceras e realmente proveitosas para elas. Mas ele, com seu olhar sempre atento (e olhe que a psicóloga sou eu!) me chamou a atenção para o quanto eu também havia mudado: eu chegava preocupada em tirar tal ponto, em comprar revista tal para mostrar a elas, sem me dar conta de que eu mesma era quem estava aprendendo. Passei a bordar, a me reconhecer nos bordados e a ver que, tal como “as meninas” bordavam para seus filhos, eu também passei a pensar nos meus, naqueles que ainda não tenho. Elas me lembraram da correria acadêmica, da idade chegando, do emprego que ainda não veio... Elas me lembraram do quanto eu havia me esquecido de mim.


Afastei-me do grupo. Pedi um tempo pra “descansar”. Dei mil desculpas
 
esfarrapadas para os outros, mas principalmente para mim mesma. O que era tudo aquilo? Como um Projeto poderia mexer com tanta coisa ao mesmo tempo? Fugi apenas para entender que eu já fazia parte de algo maior, intenso, que a academia nunca havia me permitido vivenciar. Fugi apenas para entender sobre a existência de diferentes formas de saber-fazer. 

O problema era que esta forma de saber-fazer da extensão popular se chocava
 com as outras formas que eu havia aprendido. Sentia-me uma clandestina. Mas o projeto do bordado foi bem feito (ou seria o bordado do Projeto?), tão bem arrematado e amarrado! Suas linhas me seguiram, me envolveram e se entrelaçaram a mim, sem me sufocar... Tão docemente tecendo as linhas da minha vida, do meu amor pela saúde e do meu destino. Voltei a fiar.


Doeu! Mas foi bom! O crescimento profissional e pessoal foi imenso, intenso
  e visível. Antes eu até compreendia o choro dos veteranos que deixavam o Projeto, mas ainda não havia me apropriado do significado dele. Hoje eu sei.


Nestes tão poucos meses de contato com a comunidade Maria de Nazaré, mais
  diretamente com suas mulheres, aprendi sobre a importância de ações concretas e reflexivas, sobre a partilha das dores e dúvidas, sobre o
sentimento de “utilidade” e autonomia diante de uma peça bordada e concluída por elas e por mim.


Através do Projeto, da Educação Popular e do convívio com minhas
 
companheiras aprendi a ver além do que os olhos permitem ver em termos de saúde e doença, a ver além das técnicas. Aprendi que, o que era considerado, em tempos idos, apenas uma “formação adequada para moças”, hoje se transforma numa alternativa ao diálogo e à expressão da autonomia. Transforma-se numa relação dialógica profunda entre “educadores”e “educandos”.


Aprendi ainda, através daquelas mulheres, a ver, não apenas o que elas são,
 mas sim, o que realmente somos: mulheres! Em toda sua plenitude.

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